Autor: Sua Eminência John Zizioulas Metropolita de Pérgamo
O problema da hermenêutica é de importância crucial não apenas para os dogmas, mas também para a própria Bíblia. Eu diria que, em essência, é o mesmo problema. Assim como a Bíblia é uma letra morta sem interpretação, os dogmas se petrificam e se tornam museus, objetos arqueológicos que só preservamos e descrevemos se não procedermos à sua interpretação. Pode-se dizer que os dogmas são, na verdade, uma interpretação da Bíblia.
A interpretação dos dogmas ou da Bíblia consiste em duas partes:
A) Uma tentativa de entender corretamente (e não anacronicamente – o que é difícil, bons historiadores são necessários) a realidade histórica na qual o dogma (ou a Escritura relevante) foi formulado. Isso implica responder às perguntas:
• Quais problemas a Igreja enfrentou neste momento histórico específico?
• Por que meios lidou com esses problemas: que tipo de tradição escrita ou oral tinha à sua disposição, já que cada concílio leva em conta a tradição anterior;
• Qual era o vocabulário e os conceitos usados pelo ambiente cultural da época. Por exemplo, no século IV foi usado o termo “consubstancial”, que não é usado no Novo Testamento, enquanto o século XIV tinha outros conceitos.
• Que tipo de experiência (de adoração, ascetismo, etc.) a Igreja teve (por exemplo, o testemunho no Novo Testamento, os ícones do Sétimo Concílio Ecumênico, hesicasmo, etc.)
Todas essas coisas devem ser levadas em conta para formar conhecimento do ambiente histórico. Sem essa base histórica precisa, qualquer interpretação é arriscada. Assim como não se pode interpretar Candle. Escritura sem primeiro conduzir um estudo preciso e objetivo, na medida do possível, do ambiente histórico, assim é com dogmas. É necessário ver quais foram os problemas que levaram à formulação de um dado dogma, com qual material filosófico e filológico os Padres trabalharam e qual experiência (litúrgica, ascética, etc.) deu origem à formulação do dogma. Um bom dogmático também deve ser um bom historiador.
B) A tentativa de identificar e expressar problemas contemporâneos que requerem interpretação, a saber:
• Quaisquer novas heresias ou novas questões que interessem ao homem, sempre de natureza fundamental (por exemplo, as atuais “Testemunhas de Jeová”, etc., mas também a tecnologia, a ecologia, etc.).
• Qual é o vocabulário e as categorias que a modernidade utiliza (vimos que os Padres também foram contemporâneos de seu tempo e não se fixaram na letra do Novo Testamento, mas acrescentaram o termo “consubstancial”).
• A vida litúrgica e ascética da Igreja (que em essência não pode diferir da antiga, mas pode ter diferentes formas e acentos, por exemplo, o martírio, a oração mental-coração na forma praticada no hesicasmo, a influência do monaquismo nos serviços “seculares” da Igreja – as Horas, etc. – e a separação gradual, incompleta e inconsistente, do culto “secular” do monástico – tudo isso mostra mudanças nos acentos na experiência litúrgica e ascética, que não podem deixar de afetar a interpretação dos dogmas.
Para fazer uma boa interpretação, o dogmático deve ser não apenas um bom historiador, mas também um bom filósofo (ou seja, com um pensamento filosófico e conhecimento da filosofia contemporânea), e também ter uma atitude pastoral (amar o homem, ser atencioso com seus problemas, etc.). Ele também deve conhecer a experiência litúrgica e a vida da Igreja e sua estrutura canônica, porque esses elementos também expressam a fé dogmática da Igreja.
Tudo isso, é claro, não pode ser realizado por uma pessoa de forma original – ou seja, ser um pesquisador original de tudo isso – mas ela deve, se quiser ser um bom dogmático, manter-se atualizada com as últimas posições dos especialistas nesses campos.
Qual é a relação dos dogmas com a Sagrada Escritura?
A relação dos dogmas com as Escrituras é hermenêutica. O problema colocado pelos teólogos ocidentais após a Reforma, ou seja, se temos uma ou duas “fontes de revelação divina”, como eram chamadas, reflete o problema específico entre católicos romanos e protestantes devido ao fato de que estes últimos rejeitaram a autoridade da Tradição da Igreja e introduziram o princípio de “sola scriptura”.
O problema foi introduzido na teologia ortodoxa pelas chamadas “confissões de fé ortodoxas” do século XVI. Assim, dependendo da divergência da “confissão” (Mogila – catolicismo romano, Cyril Lucaris – calvinismo, etc.), uma resposta foi dada e ainda é dada pelos ortodoxos. O Ocidente foi levado a essa abordagem principalmente por duas razões que não se aplicam à ortodoxia:
• O Ocidente não tem a ideia de que a revelação é sempre pessoal e nunca lógica ou racional. Deus se revela a Abraão, Moisés, Paulo, os pais, etc. Portanto, a questão de uma nova revelação ou um suplemento à revelação, ou mesmo um aumento na revelação, como foi colocado no Ocidente (cf. Newman) e até mesmo foi expresso por teólogos ortodoxos, nunca surge.
• No Ocidente, a objetificação da Escritura e da Igreja, e assim se começa a falar de “repositórios” da verdade. Mas na tradição ortodoxa, tanto a Escritura quanto a Igreja são testemunhos das maneiras de experimentar a verdade, não “mentes” que concebem, registram e transmitem verdades. Isso ocorre porque a verdade na tradição ortodoxa não é uma questão de proposições lógicas objetivas, mas de atitudes e relacionamentos (pessoais) entre Deus, o homem e o mundo. Por exemplo, eu não conheço a verdade quando intelectualmente sei e, em última análise, aceito que Deus é trino, mas quando eu mesma estou existencialmente envolvida na existência trina de Deus, por meio da qual toda a existência ganha sentido — a minha e a do mundo. Assim, uma mulher comum que é um verdadeiro membro da Igreja “conhece” o dogma da Trindade. O mesmo se aplica à Cristologia, etc.
Portanto, se a Revelação de Deus é uma questão de experiência pessoal e da participação mais ampla do homem em uma rede de relacionamentos com Deus, com os outros e com o mundo, que lança nova luz sobre toda a existência, então as Escrituras que dão testemunho dessa revelação são tão completas em termos do conteúdo da Revelação quanto qualquer outra forma de tal Revelação desde a formação do cânon bíblico. E aqui os seguintes esclarecimentos devem ser adicionados imediatamente:
Embora em todos os casos de tais Revelações pessoais e existenciais estejamos falando da Revelação do mesmo Deus, os caminhos dessas Revelações são diferentes. Por exemplo, no Monte Sinai temos a revelação de Moisés do mesmo Deus que se revela a nós em Cristo, mas não da mesma forma. Em Cristo temos a possibilidade não apenas de ver ou ouvir Deus, mas também de nos aproximarmos Dele, de tocá-Lo, de senti-Lo, de nos comunicarmos com Ele fisicamente. “O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e as nossas mãos apalparam, a respeito do Verbo da vida.” (1 João 1:1).
As epifanias no Antigo Testamento, e portanto aquelas no Novo Testamento, embora tenham o mesmo conteúdo, não são reveladas da mesma maneira. E uma vez que, como dissemos, a Revelação não é uma questão de conhecimento objetivo, mas de relacionamento pessoal, a maneira da Revelação é essencial porque introduz novos relacionamentos, isto é, novas maneiras de ser. (A questão do relacionamento entre o Antigo e o Novo Testamento é historicamente muito antiga na teologia patrística e foi resolvida principalmente através da teologia de Santo Irineu de Lyon, que corrigiu significativamente o ensinamento de São Mártir Justino, o Filósofo, sobre o Logos. Mais tarde, esse relacionamento foi formulado perfeitamente por São Máximo, o Confessor, com o princípio: “As coisas do Antigo Testamento são uma sombra, as coisas do Novo Testamento são uma imagem e aquelas do estado futuro são a verdade”).
Portanto, na pessoa de Cristo temos uma forma única de Revelação, que se caracteriza pela comunhão através dos sentidos (visão, tato, paladar, etc.), conforme o que é dito em 1 João 1:1: “e as nossas mãos apalparam”, e não simplesmente através da mente ou do coração. Portanto, esta forma é definida pelos Padres como a mais alta e completa. Nada mais elevado que a Cristofania pode revelar Deus: “Quem me viu, viu o Pai” (João 14:9).
Assim, o Novo Testamento, que descreve a experiência de pessoas que tiveram essa comunhão corporal com Deus (“o que vimos e nossas mãos tocaram”), faz sentido tanto para as epifanias no Antigo Testamento quanto para aquelas posteriores à era das Escrituras. Os Padres, como Irineu e outros, afirmam que após a encarnação do Verbo temos uma forma de revelação mais completa e nova, comparada ao Antigo Testamento.
Essa superioridade, no que diz respeito aos discípulos de Cristo, é devida à comunhão tangível e corporal com Ele. No que diz respeito à Igreja posterior, ela é realizada através dos Sacramentos e especialmente através da Divina Eucaristia, que preserva essa comunhão corporal (ver Inácio, Cirilo de Jerusalém, Cirilo de Alexandria, etc.).
Quem participa dignamente da Divina Eucaristia “vê” Deus melhor que Moisés.
Assim, toda a vida da Igreja extrai a revelação de Deus da pessoa histórica de Cristo, como atestado no Novo Testamento. Portanto, o Novo Testamento tem o significado de um ensinamento dogmático supremo e primário, em relação ao qual todos os outros modos de revelação (incluindo o Antigo Testamento e dogmas posteriores) representam suas interpretações – no sentido existencial mais profundo de interpretação, como o definimos acima, ou seja, maneiras de experimentar o ser como um novo relacionamento entre Deus, o homem e o mundo.
Conclusão: Nem a interpretação do Antigo Testamento nem a dos dogmas podem ignorar o fato histórico e a pessoa de Cristo, porque isso significaria introduzir um novo, mais completo e mais elevado modo de revelação do que o de Cristo. Disto muitas conclusões específicas seguem, mas eu observo o seguinte:
A. A Divina Eucaristia, como a mais alta relação tangível (e, portanto, conhecimento) com Deus, continua sendo a forma perfeita de revelação no sentido pessoal e existencial (“e nossas mãos a tocaram”).
B. A visão de Deus (theoptia), seja por meio de ícones sagrados ou por meio de experiência ascética, é sempre uma contemplação da luz incriada em Cristo e nunca independente Dele – isto é, é essencialmente uma Cristofania. (Isto deve ser enfatizado para evitar mal-entendidos, que, infelizmente, estão aumentando cada vez mais.) Basta citar como prova o argumento dos santos João Damasceno e Teodoro, o Estudita, e os outros para a veneração de ícones, de que a encarnação é o que requer que os ícones sejam venerados como formas da revelação de Deus, bem como os hesicastas, que entendem a luz incriada como a luz do Tabor – ou seja, o esplendor do corpo histórico de Cristo.
Retornando à relação entre Escritura e dogmas, notamos que todo dogma, independentemente do tópico a que se refere (mesmo a Santíssima Trindade), é essencialmente uma explicação da realidade de Cristo, através da qual Deus se revela como uma relação existencial vivenciada, isto é, a verdade. Não é coincidência, por exemplo, que o Primeiro Concílio Ecumênico, embora tenha lançado os fundamentos da teologia triádica, o tenha feito na ocasião e com base na verdade sobre a Pessoa de Cristo – o mesmo se aplica a todos os Concílios Ecumênicos subsequentes, mesmo quando consideraram tópicos diferentes.
Isto significa que a experiência apostólica, atestada na Bíblia, constitui o primeiro e fundamental ensinamento dogmático, que os outros dogmas apenas interpretam. Consequentemente, nenhum dogma pode contradizer esta experiência, mas apenas esclarecê-la. A experiência e a tradição apostólicas são de importância decisiva para o dogma.
Assim, surge uma continuidade de dogmas, uma relação entre eles, que pode ser comparada a ícones de Cristo pintados por diferentes pessoas em diferentes eras e com as ferramentas que cada era fornece. Essa relação tem tanto uma dimensão externa – fidelidade à tradição anterior e, finalmente, à Bíblia, quanto uma dimensão interna – preservação da mesma relação existencial entre Deus, o homem e o mundo que foi realizada e revelada em Cristo.
Trecho de: Palestras sobre Dogmática Cristã {Μαθήματα Χριστιανικής Δογματικής (1984-1985)}.