Primeiro país a se libertar da escravidão por meio de uma revolta bem-sucedida, o Haiti conquistou a independência da França em 1804. Mas o preço por desafiar a ordem colonial foi alto. Em 17 de abril de 1825, sitiado por navios de guerra franceses, o Haiti concordou em pagar uma indenização de 150 milhões de francos-ouro à potência europeia.
Oficialmente, o pagamento tinha como objetivo compensar os proprietários de plantações francesas por “propriedades perdidas” após a independência, mas o valor excedeu em muito as perdas reais.
“A França forçou os vencedores da independência do Haiti – os antigos escravos – a compensar os perdedores, os seus antigos senhores”, disse Monique Clesca, jornalista e activista de ascendência haitiana, na quinta-feira, num reunião sobre a dívida de independência do país. A reunião foi realizada durante Fórum Permanente da ONU sobre Pessoas de Ascendência Africana.
O preço da liberdade: uma dupla dívida
Esse imposto sobre a liberdade logo mergulhou a primeira república negra do mundo em uma espiral de dívidas. Quando o Haiti não conseguiu mais pagar, a França pressionou seus bancos a emprestarem dinheiro, o que chamamos de "dívida dupla", explicou a Sra. Clesca.
Em 1914, mais de três quartos do orçamento nacional do país ainda eram drenados para pagar os bancos franceses. Foi somente em 1947 – mais de 140 anos após a independência – que o Haiti finalmente quitou sua dívida.
“A França cometeu uma enorme injustiça que ainda ressoa hoje”, disse a Sra. Clesca.
Uma investigação aprofundada de 2022 por The New York Times descobriram que os pagamentos do Haiti à França somavam o equivalente moderno a aproximadamente US$ 560 milhões. Se esse dinheiro tivesse sido retido no Haiti e investido internamente, poderia ter agregado mais de US$ 20 bilhões à economia do país ao longo do tempo, segundo alguns economistas.
Haiti hoje: O legado da dívida
Embora o Haiti seja um marco na luta global pela emancipação, hoje o país vive em meio à instabilidade, com gangues armadas controlando 85% da capital, Porto Príncipe. Segundo o Banco Mundial, o país continua sendo o mais pobre da América Latina e do Caribe.
Da paralisia institucional ao tráfico de armas e corrupção, os desafios do país são imensos. No entanto, para os membros do Fórum Permanente da ONU, as raízes da crise haitiana são claras: elas estão na história.
“As crises de direitos humanos enraizadas na República do Haiti [estão] enraizadas em legados de escravidão, colonialismo, pagamentos de dívidas, ameaças e intervenções militares”, afirmou o órgão consultivo da ONU. Conselho de Direitos Humanos em uma documento de posição no mês passado.
Um reconhecimento tardio
Respondendo aos crescentes pedidos por justiça, o presidente francês Emmanuel Macron anunciou na quinta-feira a criação de uma comissão conjunta de historiadores haitianos e franceses para examinar o impacto da indenização de 1825.
Embora tenha acolhido com satisfação a iniciativa, Martin Kimani, um membro do Fórum Permanente, enfatizou que a eficácia da comissão dependeria de sua disposição de reconhecer plenamente os danos causados.
“Pedimos a restituição dos valores financeiros extraídos por meio desse acordo de custos, juntamente com medidas reparadoras mais amplas para abordar o subdesenvolvimento estrutural do Haiti e a negligência internacional”, disse o Sr. Kimani durante a reunião, realizada no último dia da quarta sessão do Fórum nesta semana.
De acordo com relatos da mídia, até agora o presidente francês não se comprometeu com reparações financeiras.
Pedidos de restituição
“O passado colonial cria responsabilidades que devem ser assumidas coletivamente pela França e pela comunidade internacional”, disse Pierre Ericq Pierre, Representante Permanente do Haiti na ONU, que participou da discussão.
Segundo o embaixador haitiano, as desigualdades persistentes do país estão enraizadas em seu passado colonial e no peso do “resgate”.
Na sua opinião, a restituição seria apenas uma questão de distância. "Não se trata de vingança", disse ele. "Trata-se de verdade e justiça."
Justiça restaurativa
O povo haitiano merece um futuro livre de violência – um futuro que atenda aos padrões básicos de desenvolvimento, disse Gaynel Curry, outro membro do Fórum Permanente.
Além de devolver a dívida colonial, a Sra. Curry pediu a criação de um fundo internacional de reparações para o Haiti e o estabelecimento de uma investigação independente, sob o Conselho de Direitos Humanos, para explorar caminhos para a justiça restaurativa.
Para Verene Albertha Shepherd, vice-presidente da Comitê da ONU para a Eliminação da Discriminação Racial, tais medidas também honrariam outra dívida – a dívida moral devida pelas pessoas de ascendência africana aos revolucionários do Haiti.
“Esses lutadores pela liberdade causaram medo nos corações de todos os donos de escravos”, disse ela.
Mais de dois séculos após a independência do Haiti, ela acrescentou, chegou a hora de fazer justiça.